Apresentação:
Naquele tempo havia um homem lá.
Ele existiu naquele tempo.
Se existiu já não existe.
Existiu, logo existe porque sabemos que naquele tempo havia um homem e existirá, enquanto alguém contar sua história.
Agnes Heller
Nesta série de artigos, apresentamos nossa contribuição para manter viva a memória do amado Mestre Irineu. Fruto de uma pesquisa bibliográfica minuciosa, esta série busca revelar a trajetória e a obra deste distinto senhor que, com sabedoria, honra, simplicidade, amor e persistência, construiu um legado que transformou a história da ayahuasca em nosso país.
Nosso objetivo é apenas um: preservar a memória do Mestre. O registro dessa tradição é uma necessidade urgente. A herança cultural vinda da floresta e o legado da tradição do Daime encontram-se ameaçados pelo esquecimento e pelas distorções, apesar dos esforços de muitas pessoas de boa vontade para resgatar e honrar a história de vida do Mestre Irineu.
Quem foi Raimundo Irineu Serra?
Trabalhador, negro, nordestino, migrante, caboclo, ribeirinho, seringueiro, sem-terra, santo, xamã, líder, médium, espírita, pajé, curandeiro, poeta, compositor, mestre.
Raimundo Irineu Serra foi tudo isso e muito mais. Um homem-lenda que atravessou o Nordeste e a Amazônia, das festas populares ao canto mais sagrado da floresta; da música e da dança à fé mais universalista. Ao ritmo do maracá, santos, anjos, encantados, caboclos e divindades se uniam na mágica celebração que fazia o Astral caber em uma mente, em um pensamento. Nesse firmamento de infinitas possibilidades, emergiu um Mestre na floresta.
Conhecer a vida de Raimundo Irineu Serra é entender uma existência fundamentada na cultura da paz herdada do xamanismo ancestral, com elementos de integração e respeito na relação com a natureza. É uma história de travessia, onde as fronteiras do uso da ayahuasca foram completamente reconfiguradas, transcendendo as florestas e os xamãs para firmar sua luz nos centros urbanos pelo Brasil e pelo mundo.

O termo ‘xamanismo’ ainda é alvo de intensos debates, sendo difícil enquadrá-lo. A experiência xamânica, por assim dizer, é uma vivência com o suprassensível, um sentir onde a razão ocidental encontra pouco espaço para enquadrá-la, defini-la e rotulá-la.
O xamanismo lançou às entranhas da sociedade ocidental um desafio ao olhar positivo da ciência sobre a natureza da realidade e da percepção.
Esse desafio estremece a compreensão da realidade e do que consideramos mundo. O próprio conceito de xamã, nos força a olhar e compreender questões muito mais amplas do que a simples definição do termo.
Tradicionalmente, o xamã é visto como um mediador entre o mundo dos homens e o mundo espiritual, um intermediário entre as formas de compreender o mundo humano e o sobrenatural. Para entender plenamente o valor deste conceito, precisamos considerar uma infinidade de experiências que variam de acordo com cada sociedade ou grupo que se identifica dentro do xamanismo.
O xamanismo deve ser compreendido como um complexo cultural com sua própria teia de significados e visões de mundo. Nele, as representações servem como formas de interlocução do ser, e os ritos são expressões simbólicas de uma meta-fala. Na interlocução entre o todo e o uno, o símbolo se destaca como uma representação cultural externa.
A prática xamânica é uma comunicação do ser que expressa uma sensação íntima por meio de símbolos externos. Os símbolos rituais permitem a expressão de múltiplos significados em uma única forma. A experiência de cura é dinâmica, envolvendo uma interação entre necessidade e saberes encantados da floresta. No xamanismo ayahuasqueiro, a planta serve como veículo de cura e objeto de reverência e respeito. A ayahuasca é uma ferramenta poderosa nas mãos do xamã, permitindo uma comunicação direta com o mundo espiritual.
O praticante é o centro desse processo, e o ritual é uma manifestação cultural que emerge da ação coletiva. Todos devem compartilhar os mesmos símbolos e códigos que compõem o rito e transmitem o valor do sagrado. Para entender a travessia do uso da ayahuasca, devemos considerar o processo de expressão, pois sem ele o símbolo não existe.
Estudar esses símbolos nos conecta a experiências singulares que se projetaram para a ‘eternidade’. Algo no passado deu origem a um processo histórico autêntico e inovador. Mestre Irineu internalizou os sentimentos desse processo, sendo o pioneiro dessa travessia, rompendo limites da existência e estabelecendo uma nova ordem de culto. Ele, um caboclo matuto, escreveu seu nome na história com maestria, sendo considerado por muitos um ‘mensageiro divino’.
Sua prática criou uma forma de espiritualidade que ressoava profundamente com aqueles que buscavam cura e compreensão, desafiando a visão ocidental sobre espiritualidade, ampliando os horizontes do que entendemos por realidade e cura.

O xamanismo pode ser visto como uma mediação entre a experiência individual e o legado cultural, herança ancestral expressa através de singulares representações. Ele revela que, em suas experiências únicas, os ancestrais se fazem presentes. A sabedoria sagrada manifesta-se em altos graus de conhecimento, operada em rituais de cura que alteram dimensões raras e sentimentos perceptíveis apenas aos sensíveis, em lugares em que a vida traz o brilho de uma aura encantada, viva. Nessas dimensões, a tradição do passado harmoniza-se com a juventude do presente.
A cura é vista como mais do que apenas restaurar a saúde física ou mental. Ela envolve a reestruturação das raízes espirituais e morais do ser, exigindo uma jornada corajosa de transformação pessoal. Para alcançar a cura, é necessário trabalhar essas origens morais do desequilíbrio. Isso significa ir além dos sintomas e olhar para as causas mais profundas que residem no inconsciente, em atitudes e comportamentos que carregamos ao longo da vida. É preciso uma profunda revisão pessoal – das atitudes, dos comportamentos, das crenças que moldam quem somos.
A ayahuasca tornou-se a chave para essa compreensão mais profunda, atuando como um portal para o suprassensível, onde se podem encontrar respostas e orientação espiritual. Um meio de conexão com o divino e um caminho para a transformação pessoal e coletiva. O uso da ayahuasca em rituais é um exemplo de como o passado e o presente se encontram, criando um legado vivo e contínuo.
O ritual é mais do que uma tradição, é uma vivência profunda que conecta o indivíduo ao coletivo, ao sagrado e ao eterno. Quando a percepção de uma realidade de beleza infinita expressa seus segredos na dinâmica de um ritual, mantém-se os elos que dão significado à compreensão humana.
A vida renova sua força em cada ritual, transmitindo e criando o conhecimento milenar dos povos da floresta. Ao nos permitirmos essa transformação, não apenas restauramos o equilíbrio, mas também nos aproximamos da essência divina que habita em nós. Contemporaneamente se sabe que severos quadros clínicos de doença corporal ou mental desaparecem ou são atenuados à medida que as atitudes e comportamentos pessoais se alteram, desativando padrões autodestrutivos e tornando a pessoa menos vulnerável a si mesma.
As pessoas que buscavam cura nos tempos de Irineu estavam lançadas ao caos e ao abandono, sem recursos para medicamentos prescritos e geralmente em estado grave, muitas à beira da morte, na mais precária condição, fatalmente lançados ao aniquilamento total se não fossem submetidos a tratamento específico e regular.
Esse tratamento veio pelas mãos de curandeiros, pajés e xamãs. A condenação ao aniquilamento foi superada por experiências caboclas que encontraram no legado xamânico dos povos da floresta, inspiração e instrução.

Bravos nordestinos aprenderam uma nova relação entre homem e natureza, iniciados no universo de segredos, encantos e mistérios das ‘Plantas Sagradas’, que trazem nova visão à mente. Mestre Irineu, ao mergulhar no xamanismo, compreendeu que a verdadeira cura envolvia um alinhamento espiritual, uma conexão profunda com a natureza e com os ensinamentos ancestrais.
Aqueles que estavam à beira da morte encontraram uma nova chance de vida através da ayahuasca. O conhecimento milenar dos povos da floresta, transmitido através de rituais, proporcionou cura e renovação. O legado do xamanismo curandeiro transcende as fronteiras nacionais, criando um elo cultural nas realidades dos seringais da Amazônia.
Essas áreas, marcadas pelo terror e violência do capital na extração da borracha, usavam métodos de domínio como tortura, escravidão e endividamento forçado. Em meio a doenças que proliferavam, o xamanismo tratava as moléstias do corpo e mergulhava na consciência dos iniciados, ressignificando o terror e a violência através da relação com o sagrado.
Isso transformava a vida, projetando sonhos de esperança e libertação. Ordem e caos se encontram em equilíbrio nas mãos daqueles que superaram o medo e enxergaram além do bem e do mal. A cura está nas zonas de visões, comunicação entre seres terrestres e sobrenaturais, envolvendo putrefação, morte, renascimento e gênesis.
Ao confrontar o mal em sua mente com a ayahuasca, a vítima desperta a força do guerreiro ancestral, supera as fraquezas humanas, encanta-se com a natureza e, mesmo frente à putrefação de seu corpo, mantém o olhar além do algoz.
O xamanismo nos seringais da Amazônia não apenas tratava doenças físicas, mas também ressignificava traumas e violências. Os curandeiros e caboclos eram figuras fundamentais nesse processo de transformação, guiando os iniciados através de profundas jornadas espirituais, utilizando a ayahuasca como instrumento central.
Com seu poder de alterar a percepção e abrir portais para o mundo espiritual, a ayahuasca possibilitava uma conexão direta com dimensões superiores, ela permitia que os iniciados enfrentassem seus medos mais profundos e emergissem renovados, com uma nova visão de si mesmos e do mundo.
A força despertada pela ayahuasca permitia que os seringueiros superassem as adversidades impostas pelo sistema opressor. Eles encontravam na espiritualidade e no contato com o sagrado uma forma de resistência e superação. A ayahuasca transformava vítimas em guerreiros, capazes de olhar além da opressão e encontrar significado e esperança mesmo nas condições mais adversas.
Esse jogo de imagens é libertador, mas aos olhos da ignorância é uma condenação à morte: a razão não capta a mensagem do silêncio. Curandeiros, xamãs e pajés desmontam o sistema de domínio ocidental desde dentro, exemplo que Raimundo Irineu Serra aprendeu com maestria.
O xamanismo ayahuasqueiro promove a comunhão sagrada com uma bebida que expande a consciência, transformando a visão de mundo e a conduta de cada indivíduo. A vida de Mestre Irineu revela a jornada de um peregrino que buscou superações práticas e respostas ‘inatingíveis’. Ao retornar da floresta com uma grande revelação, ele lançou a experiência cabocla a outras fronteiras, rompendo limites e vislumbrando novos horizontes.
Mestre Irineu cristianizou a comunhão da bebida, imprimindo-lhe uma nova identidade, mas manteve a honra ao xamanismo. Embora chamasse a bebida de ‘Daime’, sempre reconhecia seu nome indígena, ‘Uasca’, e se considerava ‘uasqueiro’. Por quase 60 anos, ele comandou essa travessia com honra e dignidade, tornando-se o Mestre Império Juramidam.
Ao transformar a experiência cabocla e integrá-la com elementos cristãos, ele criou uma identidade espiritual que transcendeu fronteiras e trouxe esperança e cura a muitos. Mestre Irineu é um testemunho vivo da capacidade de transformação e integração espiritual. Sua jornada e liderança continuam a inspirar e guiar aqueles que buscam a comunhão com o sagrado através da ayahuasca.
Compartilhamos essa série de artigos sobre a vida de Raimundo Irineu Serra, um homem cuja vida foi transformada pela ayahuasca e que, por sua vez, transformou a história da ayahuasca, no Brasil e no mundo. Sua fé nas revelações que recebeu e sua persistência em seguir as orientações que lhe chegavam na mente e no coração, apesar de todas as dificuldades materiais e sociais ao seu redor, possibilitaram a expansão do uso da ayahuasca de uma maneira sem precedentes.
Hoje, se temos a possibilidade de beber esta sagrada alquimia, é porque, naquele tempo, existiu Raimundo Irineu Serra. Ele existiu e ainda existe, pois permanece vivo em nossa memória. E permanecerá enquanto alguém contar a sua história…
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