A travessia da experiência com a ayahuasca ocorreu nos seringais amazônicos, nas fronteiras onde a cultura dos curandeiros interagia com projetos de integração nacional. Essas áreas, especialmente na passagem do século XIX para o XX, eram como ilhas movediças. Um exemplo é o atual estado do Acre, que até então não figurava em nenhum mapa oficial e não pertencia a nenhum Estado Nacional.
Contestada por Brasil e Bolívia, a região do Acre foi palco de conflitos, inclusive uma guerra em 1889. Nordestinos reivindicaram autonomia perante o “Bolivian Syndicate”, um consórcio capitalista internacional composto por empresas dos EUA, Inglaterra e Alemanha, que havia arrendado o território para colonização e exploração de recursos naturais, inclusive formando uma milícia armada.
O conflito era iminente. Os seringueiros estavam vulneráveis nas mãos dos senhores de capital, terras e gente – estrangeiros, brasileiros ou bolivianos. Do lado brasileiro, outros poderes cobiçavam a região, sonhando com as fortunas da borracha e outros recursos naturais. Nesse contexto, o “Barão do Rio Branco” se destacou. Homem influente em Manaus e outras regiões do Amazonas, ele armou os seringueiros e alguns líderes dispostos à causa, intensificando o conflito na busca pelo domínio da região.
Para os trabalhadores degredados e muitas vezes cativos, a única alternativa era lutar pela sobrevivência e pelo sonho de liberdade, acreditando encontrar melhor sorte no lado brasileiro. O conflito estourou, líderes se destacaram e, em 1903, o Brasil saiu vitorioso. Em 1910, a produção de látex cresceu de forma sem precedentes, atingindo o pico de 47 mil toneladas de borracha silvestre ao ano. Essa riqueza logo seria escoada para longe da região, o que obrigou os seringueiros a desenvolver estratégias de sobrevivência, sempre em busca de manter a saúde e a aura encantada dos povos da floresta.

Novos retirantes foram arregimentados no Nordeste, os chamados “soldados da borracha”. Entre eles estava Raimundo Irineu Serra, que por volta de 1912 foi trabalhar como seringueiro nessas regiões.
Vale lembrar que somente na década de 1960 o Acre foi incorporado ao Território Nacional como Estado Autônomo. Isso nos faz refletir sobre a complexidade da região. Acima de todas as autoridades constituídas pelo poder público, os curandeiros eram líderes e conselheiros de comunidades isoladas e abandonadas. Teria sido no Alto Abunã o local de encontro da ayahuasca com os peregrinos e a despedida de seu velho mundo.
Os seringais foram o ‘caldeirão da ayahuasca’. Os portadores da sabedoria antiga eram os curandeiros e os aprendizes, os nordestinos. Experiências humanas de percepções singulares da realidade nasceram da simbiose de interações sociais dinâmicas e autênticas, entre a livre articulação da linguagem, das mãos e das idealizações mentais, num ambiente distante das pressões fabris da industrialização.
A experiência do curandeirismo amazônico é uma imersão na proximidade entre o mundo espiritual e o material. Nessas culturas, ambas as dimensões da realidade interagem o tempo todo, com experiências cotidianas sendo derivações das espirituais, desde a doença até a cura.
Essa vivência emerge de um contexto onde a relação homem-natureza é valorizada em uma interação harmônica, de equilíbrio e respeito. O homem se entende como parte ativa e viva dessa natureza sagrada. Ao perceber a natureza como um ente sagrado, os elementos naturais são vistos como manifestações dos espíritos superiores. Quando trabalham com elementos da natureza para curar enfermidades, os curandeiros compreendem que estão realizando afazeres sobrenaturais.

O pajé cura ou não cura, a reza de um ancião é ou não um portal divino, e todos sabem se a saúde melhorou. Ao longo de uma vida, a memória atua praticamente como um ente vivo.
A cura inicia-se pela interação entre os elementos humanos e extra-humanos, naturais e sobrenaturais. Desde a colheita das plantas, esse processo é revestido de uma aura mágica. Para o curandeiro, a ligação com o divino é direta, sem necessidade de intermediários, pois a união entre os planos materiais e suprassensíveis torna-se real em sua cosmologia. A crença se fortalece pelo ritual. O curandeiro, confiando em sua tradição e no legado herdado, liga seu pensamento em Deus para levantar quem precisa de cura. A confiança nos elementos da natureza é a chave para acessar os planos superiores. Respeitando a planta como um ente sagrado, ele identifica o poder divino em cada partícula da vida. A união entre o conhecimento dos segredos dos elementos naturais e a aura de uma cultura encantada é essencial para a sobrevivência milenar dos povos da floresta.
Foi por causa dos curandeiros que habitavam os seringais durante a extração da borracha que esse conhecimento chegou até nós. Os primeiros caboclos eram descendentes de índios que vestiram roupas, começaram a falar português, a rezar o terço e mudaram-se para longe das aldeias. Quando os retirantes nordestinos chegaram, houve uma nova efervescência no caldeirão da ayahuasca. Esses novos caboclos tornaram-se filhos da floresta, por necessidade, sonho de riqueza, mas também por reconhecimento e identificação. Será com eles que a ayahuasca fará a travessia definitiva, partindo da floresta para os centros urbanos.
Ao estudar as experiências históricas nos seringais, partimos do olhar do xamã para compreender um passado distante que hoje fulgura em nossa memória como uma época estranha. Investigamos os reflexos das transformações da modernidade na constituição de um movimento vivo, centrado na troca de experiências por meio de relações de cura.
Com isso, entendemos a experiência social de uma comunidade específica que germinou sobre as bases de uma nova forma de comunhão com a ayahuasca. Raimundo Irineu Serra, um seringueiro que enfrentou severas condições de existência como todos de seu tempo e local, lutou pela sobrevivência e superou a fronteira da morte. Ele recriou a vida e o sentido de sua existência, fundando as bases de uma tradição.
O século XX foi um período de extremos, onde os donos do poder se digladiaram para cumprir suas agendas. As potências mundiais usaram tecnologia e avanços científicos não só para o progresso, mas também para criar artefatos de destruição em massa. Se a visão de mundo dessas potências não fosse aceita, a destruição contra os ‘inimigos’ ocorreria em uma escala jamais vista antes.
Esse século foi contraditório, marcado por superações de limites e rompimentos de barreiras, ao mesmo tempo que a condição de existência foi lançada às situações mais degradantes. O avanço da tecnologia trouxe inúmeros benefícios, mas também foi utilizado para criar as cenas mais cruéis da história.
O século XX tornou visível a luta insana dos donos do poder entre si e a luta pela sobrevivência de uma grande humanidade feita cativa. Potências mundiais, donas de terra e gente, guerreavam pelo poder, usando todo o conhecimento e tecnologia para instrumentalizar suas catástrofes.
Os extremos vividos no século XX lançaram um imenso desafio: como ser humano em um mundo onde a crueldade se tornou banal? Ser humano com equilíbrio e sabedoria para superar as limitações e degradações do meio social, construindo em seu campo um belo jardim, alimentando a esperança de vida e felicidade para si e, em consequência, para toda a humanidade.
Uma humanidade doentia e sedenta por sangue e morte, em um mundo de caos e paradoxos. Esta foi a condição em que o mundo se encontrava quando a ayahuasca começou a penetrar nos centros urbanos.
Raimundo Irineu Serra chegou na Amazônia no início do século XX, acompanhando o movimento de retirada de borracha da floresta, que seria utilizada nas Guerras Mundiais. Nessa jornada, ele recebeu o conhecimento ancestral do xamanismo sobre a ayahuasca pelas mãos dos caboclos, construindo sua trajetória rumo ao sagrado e dando vida à forte tradição do daime, sempre com o rogativo de paz e cura à humanidade.
A realidade dos seringais era austera e sofrida, influenciada diretamente pelas catástrofes históricas que afetaram a cultura e a mentalidade das comunidades ayahuasqueiras. A doutrina se constituiu em meio a uma atmosfera pesada e negativa, presente na vida e no cotidiano dessas pessoas.

O preço pago pelas empresas pela borracha bruta era irrisório. Era um sistema de exploração organizado, reminiscente da mais cruel e desumana das condutas sociais: a escravidão. Uma vez atolado em dívidas, o caboclo nordestino estava em total dependência dos patrões dentro de uma floresta densa e desconhecida. Com o passar do tempo, os míseros ordenados de sua lida não eram suficientes para sua própria sobrevivência, muito menos para sanar as dívidas do passado, tampouco as dívidas do presente.
Essa era a realidade dos habitantes dos seringais no final do século XIX e início do século XX. Todos eram vítimas de um processo que utilizava torturas e execuções com requintes de crueldade para estabelecer a lógica do medo, do caos e da morte como “ordem social” e moeda de troca. A escravidão por dívidas era institucionalizada e mascarada por contratos de trabalho. Consórcios internacionais de empresas, em parceria com os Estados Nacionais, geravam lucros rentáveis para os barões da borracha em Manaus, que viviam em luxo, acendendo charutos cubanos com notas de 100 dólares em salões de festa em Paris. Esses consórcios chegavam a contar com forças militares privadas, que tinham domínio sobre a vida e a morte das pessoas por eles submetidas.
Em meio a esse terror e morte, surgiu um novo sentido a partir da sublevação da loucura e da insanidade. Forças ancestrais de bruxaria, feitiçaria e magia despertaram com intensidade, capazes de subverter a ordem cruel estabelecida. Os bravos peregrinos tiveram que criar suas próprias bases de sobrevivência, lançando um olhar além da loucura e criando um novo e sublime sentimento de fé acima do caos.
O nascimento deste “Novo Mundo” foi doloroso e sangrento, mas, elevando a consciência para além da violência, a comunhão com a ayahuasca possibilitou a reconstituição da dignidade humana. As plantas sagradas da ayahuasca se tornaram revolucionárias, proporcionando a transformação do “estado das coisas como elas são.” Ayahuasca diz não à morte e subleva a barbárie com sentimentos de vida, beleza, harmonia e fraternidade.
Nos seringais, a medicina dos naturalistas, ou vegetalistas, atravessou as fronteiras da travessia humana e implantou uma nova experiência com o sagrado e o suprassensível. Através da íntima experiência com a ayahuasca, os peregrinos conseguiram continuar a caminhada, superando a dor e dando vida a um novo movimento de doutrina de confissão cristã. Essa doutrina é fundamentada na comunhão da bebida sacramental, sintetizando as experiências de purgação dos males e ascensão ao divino e sobrenatural.
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