animal de poder | autoidentdade | autoimagem | ego | espiritualidade | pantera | ser | simbolismo | xamanismo
O símbolo da Pantera e a busca pela autoidentidade.
    A grande revelacao, irineu

    Contam os sábios antigos, naquelas conversas ao redor da fogueira em noite enluarada, entre uma pitada e outra do cachimbo sagrado, em momentos onde até a natureza silencia para ouvir a inspiração divina, que há muito tempo atrás, quando o ‘homem’ apenas começava a engatinhar sobre a terra, as panteras não eram negras, a princípio todas eram pardas, nem eram solitárias como agora, viviam e caçavam em bandos a luz do dia, como os leões, que elas na verdade em tudo imitavam.

    Até no método da caça elas se espelhavam, mas não sabendo planejar direito a tocaia, parte do grupo espantava a caça que sempre corria para lado oposto do grupo tocaiado, o que gerava sempre grandes discussões sobre de quem era a culpa pelo insucesso, das que espantavam ou das que estavam tocaiadas, e assim elas passavam a vida reclamando umas das outras, sem entender por que os leões, que usavam o mesmo método, sempre conseguiam grandes caçadas enquanto elas, mal conseguiam o suficiente para sobreviver.

    Bem na verdade, dizem os sábios antigos, os leões também passavam muitos dias sem conseguir caçar um único animal, muitas vezes tendo que comer carniça para sobreviver, na época de seca quando os rebanhos migravam, a miséria saltava a vista dos corpos dos leões mais jovens, mas as panteras viravam a cara para isso, dando atenção aos leões poderosos que mantinham a forma por comer as melhores partes primeiro, deixando inclusive parte do grupo morrer à mingua.

    Quando a seca passava e as caças voltavam as panteras se esforçavam para retirar da mente aquela visão funesta dos leões famélicos. Essa era a melhor época para todos os predadores e o único momento em que as panteras ‘esqueciam’ os leões. Havia fartura para todos, mas que durava pouco tempo pois logo se estabelecia o equilíbrio e caça voltava a ser difícil, com isso as panteras voltavam a admirar os leões, principalmente os grandes machos, com suas jubas enormes, que nesse período eram mais escuras e espessas. As leoas, verdadeiras caçadoras, eram quem mais sentiam o fim da fartura, gerando desavenças entre elas, mas que logo se resolviam sem grandes desdobramentos.

    Entre as panteras, suas vizinhas, ao contrário, havia grandes desavenças, com sérios derramamentos de sangue pois, por tanto ajustarem seu modo de vida ao de seus vizinhos “poderosos”, as panteras perderam seu senso de medida e faziam de qualquer bobagem um caso de vida ou morte. Competiam entre si para ver quem se parecia mais com os leões e quando saiam para caçar, acreditando que os leões as observavam – coisa que raramente acontecia diga-se de passagem – ficavam tremulas e perdiam a naturalidade o que tornava a caça uma tortura. Elaboravam táticas minuciosas de caça para impressionar seus vizinhos, que passavam a maior parte do dia roncando. Querendo ser como eles, tentavam caçar animais que só os leões conseguiam caçar, as panteras eram impotentes contra certos animais, mas só se lembravam disso quando estavam em plena luta, muitas vezes quando já estavam feridas de morte.

    Mas, naquela época, nem tudo era tristeza na vida das panteras, as vezes elas conseguiam caçar um antílope doente, ou uma zebra já idosa e se fartar em grupo a sombra de uma árvore. De barriga cheia o grupo reencontrava na luz do crepúsculo o vislumbre de uma antiga harmonia e de uma segurança cuja memória estava guardada no fundo de suas almas e que soava como ar de independência ancestral depositada no mais fundo da espécie. Ao vislumbre dessa memória distante, os olhos amarelos das panteras brilhavam de maneira intensa e perturbadora, o único traço delas que os leões sinceramente invejavam.

    Mas, dizem os sábios, nem todas as panteras se prostravam aos pés dos leões…

    Houve uma que ficou órfã muito cedo, antes que sua mãe pudesse lhe transmitir a desmedida veneração que as panteras sentiam por seus vizinhos. Essa, quando filhote, aprendeu a admirar os guepardos, como raramente se viam guepardos naquela região, a órfã guardava deles apenas uma vaga recordação, mas suficiente o bastante para fazer com que, perante a velocidade dos guepardos, os leões parecessem lerdos e sem graça.

    Naquele tempo, mãe e filha viviam em outra horda, da qual a mãe se separara ao seguir um rastro de zebra, e por estar com um filhote ao seu lado não conseguiu retornar a tempo de se juntar ao bando. Mãe e filha vagaram pela planície, subindo nas árvores, quando necessário, para se esconder de leões que, se famintos, não hesitariam em caça-las. Quando encontrava algum lugar com água a mãe escondia seu filhote e ficava em tocaia horas a fio, aguentando as moscas sem se mover para não denunciar a sua presença para possíveis caças que poderiam aparecer em busca de água.

    Haviam dois guepardos que caçavam nas proximidades onde mãe e filha se encontravam, eles graças a tremenda velocidade podiam se dar ao luxo de caçar as gazelas. Se alternavam na caças em uma disputa silenciosa por supremacia. Seu senso de caçador solitário imprimia uma vantagem, eles sabiam escolher a presa no rebanho e quando fixavam seu olhar nela não desviavam sua atenção por nada.

    As panteras haviam sido doutrinadas a caçar em grupos e a caça em grupo traz desvantagens, o barulho feito pelo grupo de caçador faz com que as presas dispersem em todas as direções, cabendo ao caçador que está na posição mais favorável abater o animal mais próximo. A mãe pantera hesitava muito perdendo instantes preciosos, o que não ocorria com os guepardos, livres de hesitação quase sempre abatiam as presas escolhidas.

    Enquanto estiveram perdidas mãe e filha viviam dos restos das caças do guepardos, não fosse por eles as panteras teriam morrido de fome… E observando as corridas incríveis e os movimentos precisos, quase cruéis, do guepardo a pantera filha conheceu um modo de caçar que não era nem de sua mãe nem dos leões.

    Por isso ela passou a ter grande admiração pelos guepardos, dos leões tivera que se esconder em árvores, ela não os reverenciavam como as outras panteras. Notou no movimento deles um desperdício de energia, que seu espirito educado na perfeita adequação de cada gesto para uma finalidade concreta, repudiava com aversão.

    A mãe lhe ensinara a ser disciplinada e cuidadosa ao máximo e sua mãe só morrera porque as outras panteras não souberam esperar o devido sinal de ataque a uma manada de búfalos. Assim desde pequena se tornou gritante para ela a desordem feita nas caçadas em grupo das panteras.

    No tempo que ficaram separadas de seu grupo a filha percebeu que o pêlo de sua mãe que era pardo-avermelhado escureceu e demorou muito tempo para voltar a cor original. Mãe e filha retornaram ao local da antiga horda, mas lá encontraram outra horda de panteras ainda maior que a anterior. Embora elas tenham sido aceitas pela nova horda sempre ocuparam uma posição mais a margem, seu cheiro era diferente para aquele grupo e este nunca esqueceu que elas vieram de fora.

    Muitas vezes na hora do descanso e da melancolia a filha surpreendia a mãe olhando sempre na direção sul e embora não soubesse o motivo deitava do lado dela e imitava o gesto como que adivinhando em sua postura que estava à espera de algo. Quando a mãe morreu a filha herdou essa postura, deitava e fixava seu olhar na direção sul e era difícil saber se esperava a volta da mãe ou do algo que a mãe ensinara a esperar.

    Como ela só devia explicações de seus atos a mãe na nova horda ela sempre gozou de mais liberdade que outras panteras jovens. Ainda muito nova, enquanto as outras panteras ficavam brincando, ela saía com grupo de caça provando desde cedo o gosto do sangue e da perseguição. Na brincadeira com outras panteras ela se mostrava tímida, pois sabia que a simulação estava um passo do sangue verdadeiro. Suportava a brincadeiras das outras panteras, mas era a primeira a se retirar quando as dentadas passavam do limite entre a brincadeira e a luta. Porém ninguém se atrevia a chama-la de covarde. Todas sabiam da desenvoltura com que ela explorava territórios onde nenhuma outra pantera se arriscava e ela também tinha um gosto por subir em árvores que era desconhecido para as outras panteras.

    Este hábito não era bem visto pela horda, pois as árvores não favoreciam a união da horda e apesar das constantes discussões, as panteras eram muito ciosas na coesão do grupo. A ideia de uma vida solitária como faziam alguns leões lhes causava pavor – embora esse fosse o desejo secreto no íntimo de cada uma delas- assim subir nas árvores representava o desejo de silenciar, se isolar e sonhar sabe-se lá com o que…

    Quando uma pantera jovem subia na árvore por curiosidade ou rebeldia a horda começava um grunhido que aumentava de intensidade até que ela descesse, mas isso não ocorria com a pantera filha, pois seu jeito de se acomodar entre as ramagens revela um domínio inato das alturas. Se mãe aceitava tal comportamento quando era viva não seriam elas que a repreenderiam. E elas até suportavam o riso dela quando elas se organizavam para fazer caçadas em grupo.

    Às vezes, em plena tocaia, justo na hora em que iam saltar do esconderijo ouviam o cristalino estardalhaço de uma gargalhada. Se era zombaria ou insanidade a horda não sabia. Mas tal comportamento irritou tanto que as jovens foram proibidas de subirem em árvores.

    Muitas vezes a horda desejava que ela voltasse de onde tinha vindo, sem desconfiar que mãe e filha vieram justamente de onde estavam, pois a mãe não revelou esse segredo, nem mesmo para a filha. De qualquer modo, por ser tão segura de si, a horda sempre reservou o papel de guia das caçadas a órfã, que após a morte da mãe não deixou de subir em árvores e de rir. Embora a horda ficasse irritada com aquele comportamento, no fim ele quebrava o clima sombrio e era tão raro ouvir risadas na horda.

    A excessiva ousadia da órfã que inquietava as adultas e afastava as jovens tornou-a tão soturna que quando ela se deitava fitando o sul ninguém se atrevia a importuna-la. Atraída por qualquer ruído ou movimento vindo do sul a órfã dormia cada vez menos, até virar uma espécie de sentinela noturna. Apesar da horda olhar com receio, admiravam a audácia e o sangue frio da órfã nas caçadas, mas não expunham essa admiração, pois seu modelo eram os leões.

    Ela não era a única a permanecer acordada, havia uma pantera chamada de colérica que não pregava o olho se outra pantera estivesse acordada. Ela era a primeira a fazer grunhido se alguma jovem tentasse subir em uma árvore. Quando era a órfã quem subia era muito doloroso para a colérica não poder protestar que ela abandonava a roda do panterio e deitava virando a cara.

    Seu maior orgulho era ter resistido a tentação de tentar subir em árvore, mesmo quando era jovem seu desejo era ver tudo sempre em ordem, a mais leve quebra na rotina ou nos costumes consolidados provocava nela uma profunda inquietação. Isso a tornava insuportavelmente inquisitiva, reparando em tudo e querendo saber de tudo, sempre pressentindo algum perigo ou ameaça ou catástrofe. Achava que só ela era capaz de zelar pela paz da tribo, e por isso, durante a noite, devia ser ela a última a fechar os olhos. Sempre arrumava uma desculpa para dar uma volta para conferir se estava tudo no lugar.

    Não era amiga de ninguém do bando, mas se aproximou de uma pantera chama ‘Lúgubre’, com quem compartilhava o prazer de enxergar no escuro e a aversão de subir em árvores, que na Lúgubre era por um trauma de ter caído de uma na infância.

    Apesar de ser presunçosa a colérica se acostumou e só para ela desabafava inúmeras queixas que sempre eram recebidas com um comentário: “Que horror”. Nem mesmo os Leões estavam a salvo das críticas dessa dupla, obviamente nenhuma das duas gostava da órfã, assim como nunca gostaram da mãe dela. A colérica foi a única a perceber que o vínculo da mãe com aquelas terras era mais antigo que a chegada delas ao grupo e foi a única a ficar intrigada com hábito de mãe e filha ficar fitando o sul todas as tardes.

    Em suas rondas noturnas, depois de certo tempo, a órfã chegou a um riacho que marcava a fronteira entre o território das panteras e o território dos leões. Caminhando na margem ela parecia indecisa em cruzar o limite que sua mãe respeitara rigorosamente. Invadir o território dos leões representava morte certa.

    Passeava junto ao riacho, tentando cruzá-lo para perder-se na outra ribeira, onde a escuridão parecia mais densa e impenetrável. Mas os olhos da colérica lhe lembravam que se cruzasse seria expulsa da horda. Assim a órfã retornava, observada pela colérica, que não tirava os olhos dela até vê-la dormindo. Passava pela órfã dormindo e murmurava “se você atravessar não voltará nunca mais”. Falava sem mexer os lábios de tal forma que a mensagem penetrava no sono. Ao chegar ao riacho essas palavras cruzavam sua mente e ela ficava confusa se eram palavras alheias ou do próprio riacho.

    E em uma bela noite de lua cheia, impelida pelo movimento interno de sua alma entrou no riacho e avançou a uma pedra que estava no meio do riacho. Nesse momento não pode conter a vontade de dar um salto até a outra margem. A brisa cessou de repente, bem como o canto dos grilos e o murmuro do riacho. Virou-se e não viu os olhos da colérica. Não viu nem mesmo as águas do riacho correndo, como se aquele salto a tivesse lançado a centenas de metros.

    Não mais que de repente, ela sentiu no ar um cheiro conhecido… um aroma familiar e antigo que a fez agachar no capim como quando era um filhote que a mãe escondia dos leões. Alguma coisa se mexeu e ela viu a sua esquerda uns olhos que a fitavam. Sentiu um frio na espinha e começou a grunhir disposta a lutar. O outro animal imóvel na escuridão, não se alterou em nada, como se ativesse absoluta confiança em sua força. Por um instante ela pensou ser um leão disposto a castiga-la pela ousadia.

    Mas aqueles olhos não eram de um leão…

    Novamente sentiu o cheiro de seu corpo, era o cheiro de sua mãe, tremendo incrédula, avançou alguns passos, o animal baixou a cabeça, cheirou seu peito e roçou-lhe o focinho. Outros olhos brilharam na escuridão e logo ela se viu rodeada por uma horda de panteras escuras, todas com o mesmo cheiro adocicado de sua mãe. Que era seu próprio cheiro.

    Na escuridão dezenas de focinhos roçaram suas patas e seu peito, com movimentos delicados e de repente começaram a correr em fila indiana, afastando-se do riacho. A órfã não hesitou em segui-las, confortada pela ordem e silêncio da coluna.

    Corriam pelo território dos leões onde o menor ruído poderia ser fatal e quando ela não pode mais acompanhar o bando parou e esperou alguns minutos antes de retomar a corrida. Viajaram a noite inteira, parando quando ela parava e retomando quando ela recuperava o fôlego. Atravessaram o território dos leões, cruzaram morros e matas, nunca ela havia corrido tanto e só não se perdeu do bando graças ao cheiro antigo e revigorante que desfazia seu cansaço.

    Quando o dia raiou o grupo pareceu perder sua coesão noturna e se desfez com as panteras separando-se, cada uma seguindo uma direção diferente. A sua frente restou apenas uma pantera e por um tempo correram juntas, mas quando ela tornou a perder o terreno a outra se esqueceu de espera-la e logo desapareceu. Quando viu que se perdeu estacou sem dar nem mais um passo sequer, estava exausta, procurou as pegadas da outra mas viu que só ela tocara o chão. Um leve arrepio percorreu sua espinha… correu a noite inteira atrás de um bando que não deixava rastros.

    Até seguir esse bando ela não tinha consciência do próprio cheiro, percebeu que até então tinha vivido numa horda que não era a dela. Toda vez que estivera a ponto de desfalecer esse cheiro lhe infundia uma dose extra de energia. A mãe lhe ensinara a esperar e depois de ter corrido tanto ela percebera que não tinha mais volta, não pela distância percorrida, mas porque ela estava irreconhecível, ficara negra do focinho à cauda. Embora tivesse corrido atrás de um bando, sentiu que tinha corrido estranhamente só, acompanhada por um cheiro, mais do que por uma horda.

    Na época de seca quando todos os herbívoros migram e os leões os seguem, era a única época em que as panteras podiam cruzar o riacho e espiar os domínios dos leões. As panteras sentiam uma inexplicável leveza quando seus vizinhos partiam para o norte em busca de água e de caça.

    Mas ainda que penetrassem no território dos leões tremiam de calafrio só de pensar que eles podiam retornar e elas lá ainda estarem, por isso entravam timidamente e só por curiosidade, pelo prazer de pisar na mesma terra dos leões, venerando e cheirando tudo que pertencesse a eles na esperança de inalar a essência dos vizinhos e quem sabe um pouco de sua força.

    Na horda haviam aquelas que queriam ir para o norte em busca de água e de caça, mas que eram reprimidas por aquelas que temiam ter que caçar lado a lado com os leões, essas queriam ir em direção as montanhas ao Sul, mas temiam que os leões voltassem às suas terras antes delas conseguirem voltar e assim ficarem presas em terras desconhecidas.. No fim as panteras dividas pelo fascínio dos leões e das montanhas distantes, faziam o de sempre não iam nem ficavam, até o ponto em que a fome apertava e elas começavam a odiar tudo aquilo que viam e não podiam caçar, como leões e pássaros, passando a odiar também as plantas, as pedras e as nuvens conforme a fome aumentava. Na verdade o que cada pantera odiava nessa época eram as demais panteras, culpando-se mutuamente pela escassez de comida e em vez de se dedicar a caçar pequenos roedores e cobras que nunca emigram, teimavam em sair do grupo, complicando ainda mais seus enredados planos de caça.

    Conforme as aguadas iam diminuindo e as tocais iam perdendo eficácia devido as horas a fio sem um único animal aparecer o humor das panteras ia piorando a ponta delas abandonarem seus postos prometendo abandonar a horda e ir viver sozinha até que no dia seguinte esses planos evaporarem mais depressa que orvalho e o grupo continuarva mais mau humorado do que antes.

    Foi a Colérica que percebeu que os leões não foram para o Norte, mas para Sul em direção as montanhas e o bando sentiu uma atração irresistível por seguir aquele rumo insólito, marchando com entusiasmos, mas ao entardecer se arrepender por ter deixado o acampamento por perceber que as pegadas dos leões se dispersavam, e que não havia nenhuma aguada na região. Tendo que decidir se voltavam o caminho ou tentava melhor sorte em direção as montanhas. Optando em seguir em frente até a pegada dos leões sumirem por completo e elas seguirem o cheiro e perceberem que eram apenas dois leões que seguiram por aquele caminho, um jovem macho e uma fêmea madura que também se separaram a certa distância, onde o bando decidiu seguir os rastros do macho por ele deixar um cheiro mais marcante.

    O leão jovem certamente fora banido pelo chefe do bando, costume corriqueiro entre os leões, quando os leões jovens atingiam certo vigor. A leoa madura que o acompanhara era certamente sua mãe, ultimo vinculo com o clã de origem, que o retirou da horda para que sua vida não corre-se perigo. Os leões jovens tinham que abandonar sua horda e caminhar solitários até ter a sorte de encontrar uma horda cujo chefe esteja em declínio para com ele disputar o cetro da chefia. Assim era a vida desses leões ou tomavam o cetro de outrem ou continuavam vivendo sós. Nenhuma horda os aceitavam por aquilo que eram: jovens leões desejosos por pertencer a uma horda, pouco importando como. Quantos leões não aceitariam uma posição inferior apenas para não ter que ficar perambulando de horda em horda em busca de constituir família. Quantos deles não aceitariam um papel subalterno enquanto não se dessem as condições para uma troca pacifica de liderança.

    Com o tempo, porém os acertos desse tipo talvez desvirtuassem o caráter dos leões, habituando-os a espera de uma oportunidade longamente cobiçada e tornando-os astutos e dissimulados o que depois de algumas gerações acabaria causando mudanças emocionais e físicas, por exemplo o desenvolvimento de um porte menos sólido acompanhando talvez de um gradual desaparecimento da juba, que sua função intimadora, não se ajustaria a nova natureza conciliadora e precavida da espécie.

    Era preciso que a juventude fosse exatamente como era, difícil e muitas vezes desesperada, para que não perdessem seus traços mais valiosos e admirados: arrojo frontal, capacidade de improviso e desprezo por todo e qualquer cálculo.

    A expulsão do jovem leão talvez explicasse o insólito movimento dos leões na direção sul e o panterio começava a se perguntar se ter seguido os rastros não fora um grave erro. Caminharam por 3 dias até encontrarem um oásis onde beberam água até não poder mais e ficaram à espreita caso algum herbívoro aparecesse o que não ocorreu e as panteras retomaram a marcha seguindo os rastros do leão. Não demoraram muito para o encontrar morto, estraçalhado e cheio de moscas. Ao seu lado um corpo de um bicho cinzento malhado semelhante a uma pantera com a barriga rasgada obra daquele leão que agora pouco restava pois fora comido pela horda daquele que agora se encontrava morto ao seu lado.

    As panteras ficaram espantadas e se perguntando que bicho seria aquele capaz de atacar um leão como se fosse uma zebra ou gnu quando perceberam que tinham ido longe demais. Estava na hora de voltar, aquele leão destroçado era como um claro aviso do limite do mundo, sinal que além daquele lugar começava algo sinistro e caótico, onde nenhum bicho devera se aventurar. Se não estivessem tão famintas teriam voltado e talvez, caso chegassem até o acampamento se vangloriariam de ter chegado até o limite do mundo, onde encontraram um leão destroçado para além do qual se impunham as montanhas que assinalam o fim de tudo.

    Mas agora viam que o mundo era muito maior e ia muito mais além do que acreditavam e percebiam acima de tudo que estavam com muita fome. Foi a Lúgubre quem primeiro percebeu que o bicho malhado se tratava de uma hiena. Como só tinham ouvido falar de hiena, um sentimento de decepção surgiu no panterio ao ver o porte mirrado daquela hiena e ao mesmo tempo de surpresa quando perceberam que aquele jovem leão foi morto a dentadas, sobrando apenas a parte de cima, por assim dizer, mais ou menos intacta.

    Por precaução, seguiram o caminho por uma parte da mata tão densa que as sombras das árvores dava uma clima e sensação de estarem caminhando de madrugada, mais a frente encontraram um brejo com uma multidão de sapos. Elas estavam tão famintas que a saparia parecia tão apetitosa quanto um rebanho de gnus.

    Após uma rápida reunião decidiram organizar uma caçada e por cabo em todos aqueles sapos, assim uma parte do grupo ficou tocaiada de uma lado da margem enquanto a outra parte foi fazer a emboscada com a intenção de espantar os sapos em direção as que estavam em tocaia. Mas a situação física delas era tão lastimável que, quando se jogaram na direção do brejo a marcha era tão triste que os sapos nem se preocuparam e continuaram de barriga para cima nas pedras, ou mergulhando nas águas, sem se incomodar com a presença delas. O grupo tocaiado esperou até não aguentar mais as picadas dos insetos, assim quando uma delas desistiu de esperar viu os sapos aproveitando a vida e as panteras arfando de cansaço do outro lado.

    E assim começou a ladainha de reclamações mútuas. O de sempre. Nessas discussões todas se enchiam de uma insuspeitada energia que podiam ficar horas brigando, o que teriam feito desta vez, não fosse um barulho que as forçou a olhar para o mato ali perto. Vira uma coisa escura brotar das árvores e saltar no meio do matagal, estremecendo violentamente a vegetação ouvindo um arfar pesado que se segue a captura de um animal. Foram verificar e viram um animal estranho, um felino como elas, escuro do focinho a cauda mordendo a garganta de uma gazela, respirando com o ronco próprio da fera que ficou por muito tempo segurando o fôlego à espreita. Avançaram mais um pouco e o animal cercado pela horda esticou as pernas como se fosse saltar o que bastou para deter a horda. Perante aquele vigor ninguém ousou ataca-lo, assim o animal pode arrastar a presa para o mato.

    Não era só medo, seu negror de tão intenso tornava difícil calcular seu tamanho. A luz fazia hora parecer imenso, hora do tamanho de um chacal. Em certos movimentos sua corpulência e seu perfil se fundiam num só aprumo perturbador. Seu negror parecia conter toda força e astucia que um felino poderia ter para atingir determinado fim. Observaram subir em uma árvore com o bicho pendurado em seus dentes, deixando-o numa forquilha alta, quando, nesse momento, arfando pelo esforço, se virou para olhá-las. Todas pensaram que jamais teriam conseguido tal proeza. “Do jeito em que estamos, nem os sapos conseguimos”, pensou a Lúgubre.

    Elas o viram deitar ao lado de sua caça, e reconheceram algo naquela postura, uma sensação estranha as pasmou por um instante. Mas ele permaneceu pouco tempo em repouso. Como se algo o tivesse chamado nas profundezas da mata, se levantou, pulou para um galho mais alto, depois para outro e quando não podiam mais vê-lo continuaram ouvindo seus saltos entre a folhagem.

    Anoiteceu e as panteras se reuniram em um ponto entre a mata e o riacho, ainda espantadas com a aparição daquele animal, e organizaram um plano de guarda para caso ele voltasse, se dividiram em 3 grupos que prestariam especial atenção a odores, barulhos e movimentos. O plano era simples, o grupo dos odores se subdividiram em odores minerais, vegetais e animais, as de ruídos em ruídos graves e agudos e as de movimentos em movimentos rápidos e lentos. Quando alguma pantera avistasse algo estranho avisaria seu chefe de grupo. O chefe do grupo então acionaria outro grupo. A ideia era que caso uma pantera visse algo se mexendo no ar rapidamente, chamaria seu chefe, que convocaria o grupo dos odores, para saber se aquilo era mineral ou vegetal, se fosse mineral poderia ser um meteorito se fosse vegetal, uma árvore caindo, assim todo o grupo precisaria sair do lugar. Se fosse animal, então sairia o grupo odoríforo e entraria em cena o acústico, para saber se a forma animal emitia um ruído grave ou agudo ou nenhum. Em seguida os chefes dos 3 grupos se reuniriam para avaliar a situação como um todo, e de posse dos dados, poderiam facilmente discernir a natureza do perigo e dar o alarme na hora oportuna.

    Os problemas começaram na hora de escolher os diferentes cargos. Todas queriam ser chefes de grupos e, assim, se armou um enorme berreiro no brejo onde estavam, quando se supunha que deviam observar o mais completo silêncio. Quando se ouviu uma voz vinda de uma árvore.

                    – Podem dormir sossegadas, vocês estão em meu território e ninguém vai incomodá-las.

    Todas as panteras levantaram a cabeça e duas bolas amarelas e incandescentes lembraram-lhes que aquela fera negra continuava oculta entre as folhagens.

    Ao se perguntarem como aquela fera podia falar a língua das panteras, ouviram dela que ela seria uma delas. Quando a dúvida e a incerteza pairava na mente de todas, a fera negra disse:

                    – Minha mãe foi morta pelo grande búfalo eu sou aquela que sempre olhava para o sul.

    Boquiabertas eles entenderam que se tratava da órfã. Era difícil acreditar. Mas ela disse o nome de cada uma delas e ao descer seu cheiro confirmou. A colérica, que a dava por morta, era a mais impressionada de todas.

    Assim, a pantera negra contou sua história de como chegara até ali, seguindo um bando silencioso, contou como aquele bando anda pisando exatamente onde a pantera a sua frente pisa e a última vai apagando as pegadas, não deixando rastro nenhum pelo caminho. Contou como sua pele mudou de cor ao seu tocada pelo focinho de uma outra pantera negra. Disse que ninguém sábia onde aquelas panteras estavam, pois não deixavam rastros e só andavam de noite. De repente começou a rir, a gargalhar e quando conseguiu falar disse que de longe percebeu que eram elas. E começou a rir fervorosamente, de chorar e doer a barriga quando foi falar do jeito que elas foram atacar os sapos.

    Feridas em seu orgulho, queriam que aquela pantera fosse tragada pela terra, onde rolava de rir, e se lembraram porque ninguém gostava dela. Essa antiga aversão era reforçada agora pela visão de musculatura e evidente robustez. Sentiram vergonha de seu aspecto esquelético e deram graças à noite que ocultava suas tristes figuras.

                    – Nós fomos prejudicadas pela hora pouco propicia. Disse uma. E pelo vento, disse outra. E pela inclinação do mato resmungou outra.

                    – Pois é, disse a negra.

                    – Deve ser desagradável ser negra assim provocou uma das panteras.

    Olhando para cima a pantera negra então disse:

                    – A gente descobre que sempre foi negra assim sem saber e que para ser negra de verdade basta ir ao coração da selva e parar de imitar os leões.

    Essa outra farpa, mais penetrante que a anterior, voltou a machucar o amor próprio do panterio. Que fingiu não entender essa história de imitar os leões.

                    – Pois é, disse a negra, quem as panteras imitam em tudo? E para quem ficam se exibindo o tempo todo? Para os leões.

    Um senso de indignação correu pelo panterio, que em negação protestou aqueles dizeres. Mas a farpa já tinha penetrado fundo em seus corações e um silêncio duro quanto uma noz se instalou entre elas.

    Para quebrar o clima, uma perguntou o que havia no coração daquela selva. A negra, com ar embevecido disse que no coração da selva tudo era repouso, calma e voluptuosidade. O clamor da selva, de repente se pagava e era como entrar em outra selva mais escura e mais secreta.

                    – Como se chega lá?

                    – Chegando e não chegando, disse a negra.

                    – Como assim?

                    – Entrando e não entrando, respondeu. Só quem conhece a floresta pode entender o que eu estou dizendo. E assim, a negra se levantou e disse que ia se retirar para lanchar e ofereceu a gazela ao panterio, que com o pouco de orgulho que ainda lhe restava, declinou.

    A pantera negra com um incrível salto subiu em uma árvore e antes de partir disse que as hienas caçam ali de dia e não gostam que outros animais cacem a luz do dia e que era melhor que elas o fizessem a noite, enquanto as hienas dormem.

                    – Mas como poderemos caçar a noite, não enxergamos nada!

                    – Se você enxerga só por enxergar, não vê nada. Mas se enxerga para caçar, vê melhor que de dia. E assim ela partiu, saltando de galho em galho até não ser mais ouvida.

                    As panteras se aproximaram da árvore e olharam para cima, mas a órfã tinha desaparecido.

                    – Sumiu. Será que a ofendemos? Perguntou uma delas, sem se a atrever a chamar pela órfã com medo de atrair outros animais.

                    – Quem sabe. Respondeu outra.

                    Voltaram a olhar para a árvore, mas já era noite e não enxergaram absolutamente nada.

    Ayahuasca: Entre a Tradição e a Modernidade, o Desafio da Preservação

    Ayahuasca: Entre a Tradição e a Modernidade, o Desafio da Preservação

    É que a só bebida não basta. Se bastasse seria suficiente ingerir DMT (princípio ativo encontrado na ayahuasca) em comprimido. Para além da bebida há o encanto, o mistério, a crença, a cultura: a realidade física mediada pelo engenho e alma humana capaz de criar significados, produzindo algo diverso da pura matéria.

    História da regulamentação da ayahuasca no Brasil.

    História da regulamentação da ayahuasca no Brasil.

    Durante um longo período de tempo a ayahuasca foi alvo de polêmicas e difamações. Por se tratar de uma substancia psicoativa, seu uso foi alvo de preconceitos e visto com receio pela mídia e pela população de um modo geral.

    Ritual com ayahuasca: Qual é o valor?

    Ritual com ayahuasca: Qual é o valor?

    Há um encontro entre os que cobram e aqueles que pagam e, assim, surge um relacionamento que passa por questões internas de como são e a relação que têm com o dinheiro. Nessa relação entra em jogo a valorização que se dá para algo, a segurança e benefício encontrado na troca, o medo de ser enganado ou ainda o pensamento de que o outro está nos usando para fazer negócio e enriquecer.

    5 Comentários

    1. richard

      Que demais… Ansioso pela continuação…

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    2. Eliana Telli

      Estou pasma, ” não sei como cheguei até este conto”, mas sei que é pra mim rs…Tenho Pantera Negra como totem e há dois dias atrás fiz uma jornada xamânica onde ela me acompanhou, me levou a uma caverna e quando olhei para trás ela me disse: Não tem mais volta agora só depende de você (…) Gratidão por compartilhar, me trouxe clareza aos meus questionamentos. Por isso digo sempre que amo esse universo xamânico! Ahow

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    3. Ana Carolina

      Me identifico com esse arsuetipo da Pantera.Tenho Familia e os amo muito Esposo e filhos !!! Significa que tenho q ficar sem eles !???

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      • Willian Tello

        De forma alguma, precisa-se de maturidade para entender os significados sutis.

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    4. Josué Ramalho

      Dificilmente leio um texto tão grande na internet, mas esse eu queria devorar, pq com tudo nele eu me espelhava..

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