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A possibilidade de uma nova vida, nesta, com a volta ao mais ancestral em nós, que em nós induz ao retorno.

Essa bebida sagrada, cujo nome provém do quéchua e significa “liana dos espíritos”, tornou-se, ao longo do tempo, a designação mais difundida para uma decocção ancestral da floresta amazônica — um verdadeiro sacramento vegetal que une homem, natureza e espírito.
Tradicionalmente, a Ayahuasca é preparada a partir da combinação do cipó Banisteriopsis caapi (conhecido como mariri ou jagube) e das folhas do arbusto Psychotria viridis (chacrona, rainha ou mescla). Essa fórmula original, transmitida por gerações entre os povos da floresta, originou uma multiplicidade de nomes que revelam a riqueza de sua presença em diversas culturas: yagé, vegetal, caapi, hoasca, daime, kahi, natema, pindé, dápa, mihi, vinho das almas, professor dos professores e até mesmo “pequena morte” — nomes que evocam tanto reverência quanto mistério.
A utilização de plantas de poder para alterar estados de consciência é uma prática milenar, presente em diversas culturas ao redor do mundo. No caso da Ayahuasca, há registros de uso documentado por ao menos 72 povos indígenas da bacia amazônica, em países como Peru, Equador, Colômbia, Bolívia e Brasil. A finalidade essencial sempre foi a mesma: transcender os limites da percepção ordinária e estabelecer uma ponte entre o humano e o sagrado.
Outras culturas também recorreram a substâncias visionárias com esse propósito: os essênios, o povo védico com a Soma, os mexicanos com o cacto Peyote, os centro-americanos com os cogumelos mágicos, entre outros. Há registros arqueológicos, como cerâmicas e petróglifos, que sugerem o uso ritual da Ayahuasca há cerca de quatro mil anos no território sul-americano.
O primeiro registro do contato europeu com a bebida data da época da colonização. Documentos inquisitoriais se referiam a tais infusões como “poções diabólicas dos índios”. O primeiro relato científico oficial foi publicado em 1851 pelo botânico inglês Richard Spruce, que documentou minuciosamente suas observações sobre a flora amazônica e sobre o uso da Ayahuasca entre os povos nativos. Ainda assim, por muito tempo, seu uso permaneceu restrito a contextos indígenas ou a círculos discretos de iniciados.

A história da Ayahuasca deu um salto decisivo por volta de 1910, quando Raimundo Irineu Serra — um seringueiro maranhense radicado no Acre — teve seu primeiro contato com a bebida. Posteriormente reconhecido como Mestre Irineu, ele sentiu-se chamado a difundir o uso da Ayahuasca dentro de um novo arcabouço espiritual. Em 1930, fundou o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU), rebatizando a bebida como “Daime” e iniciando um caminho religioso sincrético, de matriz cristã e espiritualista.
Mestre Irineu conduziu seus trabalhos espirituais até sua passagem, em 1971, deixando como legado não apenas uma doutrina viva, mas a base para a urbanização do uso da Ayahuasca. Seu gesto rompeu a exclusividade dos xamãs e pajés da floresta e ofereceu à sociedade urbana um acesso ritualizado, devocional e estruturado à força visionária da bebida.
Dessa raiz brotaram outras linhagens. Em 1945, Daniel Pereira de Mattos (Frei Daniel), discípulo de Irineu, fundou o Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz — conhecido como Barquinha — com doutrina própria. Em 1961, José Gabriel da Costa criou a União do Vegetal (UDV), também baseada no uso sacramental da Ayahuasca. Já em 1975, após dissidências internas no CICLU, Sebastião Mota de Melo fundou o CEFLURIS (Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra), atualmente rebatizado para ICEFLU (Igreja do Culto da Fluente Luz Universal), que ficou amplamente conhecido como Santo Daime. Este último teve papel central na expansão da Ayahuasca para o Sul e Sudeste do Brasil, além de sua internacionalização.
Com o crescimento desses movimentos religiosos e a aceitação progressiva da Ayahuasca em diversos setores da sociedade, a bebida passou a ser consagrada em uma variedade de contextos, tanto formais quanto informais. Milhares de núcleos e igrejas independentes surgiram, com o objetivo de proporcionar, através de rituais, experiências místicas de autoconhecimento, cura e reconexão espiritual. Tais experiências, frequentemente acompanhadas de visões simbólicas e estados alterados de percepção, promovem uma profunda integração entre indivíduo, natureza e divindade.

Em paralelo, fortaleceu-se uma corrente de xamanismo, também chamado de neo xamanismo, especialmente no Brasil, que também consagra a Ayahuasca como sacramento. Esses centros, de caráter mais universalista e menos doutrinário, oferecem um espaço fluido e acolhedor para o despertar espiritual. Sua proposta, muitas vezes, é reconectar o ser humano com a natureza, com o espírito da floresta, com seus próprios ciclos internos — e, sobretudo, com o Amor.
Esse movimento xamânico, em sua diversidade de práticas, músicas, cantos, danças, curas e orientações espirituais, manifesta o aspecto plural da Ayahuasca: planta-mestra que se adapta aos tempos, aos caminhos e às necessidades de cada buscador. Uma planta que, mais do que um enteógeno, se revela como um portal para a redescoberta da essência.
Ayahuasca: Desmistificando a Classificação como “Droga” e “Alucinógeno” no Contexto Religioso
Uma das questões mais delicadas e recorrentes em debates jurídicos internacionais — inclusive no Brasil — é a equivocada classificação da Ayahuasca como “droga” ou “alucinógeno”. Tais termos, carregados de preconceito e mal-entendidos históricos, acabam por obscurecer a real natureza do uso religioso e ritualístico dessa bebida sagrada. Para uma análise justa e precisa, é imperativo distinguir entre a nomenclatura científica, o senso comum e as implicações sociais que se escondem por trás desses rótulos.
A Nomenclatura Científica de “Droga”: Uma Definição Ampla e Técnica.
Do ponto de vista científico e farmacológico, o termo “droga” abrange qualquer substância de origem vegetal, animal ou mineral que, ao ser introduzida em um organismo vivo, produz alterações fisiológicas. Sob essa definição neutra, substâncias cotidianas como café, açúcar, chimarrão, aspirina ou um simples anti-inflamatório são tecnicamente classificadas como drogas. Portanto, o uso do termo nesse sentido é meramente descritivo e não implica nenhum juízo de valor sobre o risco, o contexto ou o propósito do uso.
A Conotação Social de “Droga” e “Alucinação”: Estigma e Desinformação.
Entretanto, na linguagem popular e na percepção coletiva, o termo “droga” tornou-se sinônimo de substância destrutiva, causadora de dependência, marginalidade, desequilíbrio social e colapso pessoal. Já a palavra “alucinação” frequentemente evoca a ideia de perda de razão, delírio incontrolável e ruptura com a realidade — uma condição associada ao perigo e à instabilidade mental.
Essas conotações sociais não apenas são imprecisas como também profundamente injustas quando aplicadas ao uso ritual da Ayahuasca. Elas negam a complexidade, a sacralidade e a função espiritual que essa prática possui em diversos contextos religiosos.
Estudos Oficiais e Evidências sobre o Uso Religioso da Ayahuasca
Diversas pesquisas coordenadas por órgãos governamentais e universidades brasileiras em comunidades ayahuasqueiras revelam um perfil diametralmente oposto ao estereótipo associado ao uso de “drogas”. Os usuários, em sua maioria, demonstram envolvimento com práticas de autoconhecimento, elevação espiritual, pacificação interior, cuidado com o outro, respeito à natureza e busca de integração harmônica com o cosmos — objetivos que exigem plena lucidez, responsabilidade e maturidade psíquica.
Adicionalmente, não foram identificados casos de dependência química, abstinência fisiológica ou comportamentos autodestrutivos relacionados ao uso da Ayahuasca em contextos religiosos. As únicas exceções apontadas dizem respeito a indivíduos com histórico psiquiátrico de transtornos como bipolaridade e esquizofrenia, para os quais o uso da substância deve ser evitado.
“Enteógeno”: Uma Linguagem Mais Precisa para uma Experiência Espiritual
Em resposta às inadequações conceituais dos termos “droga” e “alucinógeno”, estudiosos propuseram a adoção do termo enteógeno — do grego entheos, “inspirado por Deus”, e gennan, “gerar”. Enteógeno, portanto, é aquilo que gera a presença do divino dentro do ser.
Essa expressão traduz com muito mais precisão a natureza da experiência ayahuasqueira, que é comumente descrita pelos praticantes como um encontro com o Sagrado, com aspectos elevados da alma e com realidades arquetípicas que transcendem o plano ordinário da mente racional. O uso da Ayahuasca em contexto ritual, longe de ser uma fuga da realidade, pode ser compreendido como um mergulho vertical no centro da própria existência.
Até o presente momento, não existem evidências científicas robustas que sustentem afirmações negativas quanto ao uso religioso da Ayahuasca — desde que este se dê em contextos adequados, com condução experiente, respeito ao sagrado e responsabilidade coletiva.
Ainda que haja uma demanda legítima por estudos longitudinais que avaliem os impactos do uso contínuo ao longo da vida, as pesquisas já realizadas indicam benefícios consistentes em termos de saúde mental, estabilidade emocional, superação de traumas e ressignificação de valores existenciais.
A persistência no uso de termos imprecisos e carregados de preconceito — como “droga” e “alucinógeno” — apenas perpetua equívocos e impede a compreensão plena do fenômeno ayahuasqueiro. O desafio contemporâneo é transcender o vocabulário da suspeita e adentrar uma linguagem mais respeitosa, precisa e sintonizada com a realidade espiritual e terapêutica dessas práticas.
A Ayahuasca, enquanto ferramenta ancestral de expansão da consciência, exige um olhar descolonizado, informado e reverente — à altura de seu mistério e de seu potencial transformador.

Estudo Científico Multidisciplinar Atesta a Inocuidade da Ayahuasca
Entre os anos de 1991 e 1993, a União do Vegetal (UDV) protagonizou um marco na história da pesquisa científica sobre a Ayahuasca: a condução de um estudo multidisciplinar de abrangência internacional, reunindo nove respeitadas universidades e centros de pesquisa do Brasil, dos Estados Unidos e da Finlândia. Intitulado “Farmacologia Humana da Hoasca: chá usado em contexto ritual no Brasil”, o estudo foi coordenado pelo Centro de Estudos Médico-Científicos da UDV e financiado pela fundação norte-americana Botanical Dimensions, idealizada por Terence McKenna — renomado etnobotânico e defensor do estudo responsável dos enteógenos.
A pesquisa teve como objetivo central investigar os efeitos fisiológicos, psicológicos e sociais da Ayahuasca — aqui denominada “Hoasca” — quando utilizada em contextos religiosos regulares. Reunindo especialistas das áreas da medicina, farmacologia, psiquiatria, psicologia e antropologia, o estudo estabeleceu novos paradigmas na compreensão científica da experiência enteógena.
Metodologia Rigorosa e Ampla Abrangência Populacional
Realizado em Manaus, o estudo aplicou uma metodologia científica robusta, seguindo protocolos internacionais de pesquisa em seres humanos. Foram avaliados usuários experientes da Ayahuasca, todos participantes regulares dos rituais da UDV, provenientes de contextos diversos — urbanos e rurais, jovens e adultos, de distintas formações sociais. Um grupo de controle, formado por não usuários, foi submetido aos mesmos testes, servindo como parâmetro de comparação.
Foram realizados exames clínicos, testes laboratoriais, entrevistas psiquiátricas e instrumentos de avaliação cognitiva e de personalidade, estabelecendo um retrato detalhado da saúde física e mental dos indivíduos envolvidos.
Avaliação Psiquiátrica: Ausência de Dependência e Abuso
A avaliação psiquiátrica foi conduzida pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), reconhecido como Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde (OMS). Os resultados foram inequívocos: não foi identificado qualquer indício de dependência, abuso, prejuízo funcional ou deterioração socialentre os usuários da Ayahuasca.
Esse achado se destaca especialmente quando contrastado com os padrões observados entre usuários de substâncias psicoativas proscritas, onde frequentemente se evidenciam comportamentos compulsivos, degradação pessoal e impacto social negativo.
Exames Toxicológicos: Inocuidade Fisiológica Comprovada
Do ponto de vista toxicológico, os resultados confirmaram a inocuidade da Ayahuasca em sua forma natural, não adulterada. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os grupos quanto ao funcionamento dos sistemas neurosensorial, circulatório, renal, respiratório, digestivo ou endócrino.
A substância, portanto, mostrou-se fisiologicamente segura para o uso humano dentro do contexto religioso, mesmo quando ingerida regularmente ao longo dos anos.
Perfil Psicológico dos Usuários: Traços de Estabilidade e Maturidade
As avaliações de personalidade, conduzidas por meio de instrumentos como o Tridimensional Personality Questionnaire (TPQ) e o Composite International Diagnostic Interview (CIDI) — com base nos critérios do CID-10 e do DSM-IIIR — revelaram um perfil psicológico significativamente mais positivo entre os usuários de Ayahuasca.
Destacaram-se traços como reflexividade, lealdade, estoicismo, calma, frugalidade, persistência, confiança, otimismo, despreocupação, alegria e elevada autoconfiança. Tais características apontam não apenas para um bom estado de saúde mental, mas para um possível efeito estruturante, integrador e fortalecedor da personalidade ao longo do tempo.
Desempenho Cognitivo Superior: Memória e Clareza Mental Acentuadas
Nos testes de memória verbal, os participantes que faziam uso regular da Ayahuasca obtiveram desempenho consistentemente superior ao grupo de controle. Demonstraram maior capacidade de recordação imediata, tardia e pós-interferência, além de melhor concentração e processamento cognitivo.
Esses resultados refutam a concepção equivocada de que a Ayahuasca causaria confusão mental ou prejuízos neurológicos — ao contrário, os dados indicam que, em contexto ritual, a bebida pode potencializar funções superiores da mente.
Conclusão: Segurança Fisiológica, Benefícios Psicológicos e Relevância Espiritual
Ainda que o protocolo do estudo não tenha isolado, metodologicamente, os efeitos da bebida daqueles provenientes do contexto ritualístico e religioso, o conjunto das evidências aponta para uma conclusão inequívoca: a Ayahuasca é uma substância segura, não aditiva, e associada a indicadores positivos de saúde mental, equilíbrio emocional e desempenho cognitivo.
Mais ainda, o estudo confirma o que tradições ancestrais já sabiam por meio da experiência direta: a Ayahuasca, quando utilizada com reverência, sob orientação adequada e em espaços sagrados, não é uma substância de fuga, mas de integração, clareza e autoconhecimento.
Os resultados desta pesquisa foram amplamente divulgados em revistas científicas de prestígio, como Psychopharmacology (com o artigo de J.C. Callaway, PhD) e The Journal of Nervous and Mental Disease (artigo de Charles S. Grob, PhD), consolidando sua relevância acadêmica e legitimando, perante a comunidade científica internacional, o uso responsável da Ayahuasca em contextos religiosos.
Ayahuasca: Conquistas Institucionais e o Desafio da Percepção Social
Nos últimos decênios, a Ayahuasca tem avançado firmemente do campo do preconceito para o da legitimidade institucional. Em sua marcha silenciosa, porém profunda, ela tem conquistado o respeito de autoridades governamentais e ganhado espaço no cenário jurídico como expressão legítima de fé, cultura e espiritualidade. Contudo, paira ainda sobre a sociedade um véu de desinformação, sustentado por narrativas que confundem a essência com o desvio, o rito com o abuso, o sagrado com o ilícito.
Um dos entraves mais persistentes à plena aceitação do uso religioso da Ayahuasca é a associação indevida – e por vezes maliciosa – com o consumo de substâncias ilícitas, como a maconha e outras drogas proscritas pela legislação brasileira. Há centros que, utilizando indevidamente o nome “ayahuasqueiro”, transgridem os limites éticos e legais ao promover práticas que em nada se coadunam com a tradição e o espírito que regem o uso ancestral da bebida.
Essa distorção tem gerado preocupação real e legítima. Diversos inquéritos e denúncias vêm sendo acompanhados pelo Ministério Público Federal, que, atento a essa questão, busca proteger tanto os direitos religiosos quanto a segurança pública e a saúde coletiva.
A Ética como Pilar da Prática Espiritual
Os centros religiosos que trabalham com a Ayahuasca carregam consigo um compromisso sagrado: o de zelar pelo bem-estar físico, mental e espiritual daqueles que os procuram em busca de cura, sentido e transformação interior. Não se trata de uma liberdade absoluta, mas de uma liberdade fundada em responsabilidade, discernimento e reverência.
A ética deve ser o norte. A conduta dos dirigentes e praticantes precisa estar à altura da profundidade do mistério com que lidam. Cada ritual é um templo vivo, cada copo servido, uma aliança com o divino. A mínima transgressão não apenas fere a legalidade — ela profana o sagrado.
A responsabilidade, contudo, não recai apenas sobre os centros espirituais. A sociedade civil também possui um papel ativo na preservação da integridade da prática ayahuasqueira. Diante de práticas duvidosas ou do uso concomitante de drogas ilícitas, é dever cívico denunciar. No Brasil, essa denúncia pode ser realizada junto ao Ministério Público Federal ou à Polícia Federal, já que ainda não existe um órgão específico dedicado à fiscalização dessas atividades.
A vigilância não é repressão, mas zelo. Denunciar desvios não é atacar a Ayahuasca, mas proteger sua essência.
Para que a Ayahuasca ocupe o lugar que lhe é de direito — como instrumento legítimo de autoconhecimento, espiritualidade e cura —, é essencial que haja transparência, integridade e educação. A reconstrução da imagem pública dessa prática milenar passa pela clareza de informação e pelo testemunho vivo de centros éticos, comprometidos com o bem coletivo.
Ao reconstituir sua imagem perante a opinião pública, a Ayahuasca não apenas se desvincula das sombras do preconceito, mas também se afirma como um patrimônio vivo da espiritualidade humana, digno de respeito, proteção e profunda escuta.

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